quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Tempo de mudança


Bom, eu poderia dizer que nunca mais postei nada aqui, porque estou sem isso que todos chamam de TEMPO. Na verdade, eu o tenho em demasia; todos nós temos. 24 vezes por dia, roda aquele ponteiro comprido do relógio; e a cada vez que ele completa um volta nos dá a sensação de que envelhecemos, e que talvez, deixamos de fazer algo útil, seja para nós mesmos ou para alguém. Ultimamente, vejo que não fiz absolutamente nada altruísta, para ninguém. Em um dia qualquer, da semana passada, vi uma mulher de aspecto simples entrar em um restaurante, pedir comida a um funcionário. O tratamento não foi dos melhores; a resposta que ela ganhou foi, "come as sobras desse prato aí na mesa". Observei tudo em silêncio; não havia muita comida, ou melhor, sobras, no prato. Ela sentou, comeu o pouco que tinha, e saiu. Não sei o que me passou pela cabeça naquele momento; se pensei em crianças africanas perecendo sob o mesmo céu que cobre ricos, pobres, negros, brancos e índios; se me consternei com a situação. Apenas vi tudo com uma ligeira comoção efêmera e hipócrita, que, aliás, sempre esteve em voga na nossa sociedade. Por que não levantei e paguei um almoço praquela moça? - Por que seria uma esmola? Será porque não resolveria os problemas dela, não daria o conforto de que precisava? Que não preencheria seu ego? Tudo bem que sua vida não sofreria uma mudança assim tão drástica. Mas a questão é que vemos as horas passando e esperamos aquele momento que podemos insuflar o peito e dizer: fiz algo, simplesmente. E esse momento passou mais uma vez por mim, e só fiz observar. Certamente, um almoço não era do que ela precisava na vida pra resolver suas moléstias, mas era do que ela necessitava naquele momento. Não somos iguais nos 1440 minutos do dia. Não apetecemos das mesmas coisas sempre; não temos a mesma expressão, as mesmas ações. Somos tão inconstantes, tão imprevisíveis, até nas ações mais previsíveis. Não precisei de uma volta completa do ponteiro para que a vida me desse mais um tapa, bastou apenas 3 minutos - o tempo que a mulher precisou para comer.

"Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem." Marcel Proust

sábado, 16 de outubro de 2010

Não digam nunca: isso é natural


"Nós pedimos com insistência:
Não digam nunca: isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia.
Numa época em que reina a confusão.
Em que corre sangue,
Em que se ordena a desordem,
Em que o arbitrário tem força de lei,
em que a humanidade se desumaniza.
Não digam nunca: isso é natural!"

Apud PEIXOTO, F. Brecht. Vida e Obra, p. 126.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Por quê?


Por que me olham desse jeito?
Por que sempre exigem minha simpatia?
Por que não vêem a minha agonia?
Por que tenho que ficar sempre feliz?
Aliás, Por que devo ser feliz?
Por que não posso ficar zangado - ou simplesmente - inalterado?
Devo sempre expressar-me, sempre sorrir, sempre ser amigável?
Por que não posso ser hipócrita e sincero? Ser letárgico e austero?
Tenho uma própria ideia do que sou, ou do que acho ser?
Faço minhas escolhas, ou me engano fazendo, na verdade, as escolhas dos outros?
O que quero são repostas que me dêem liberdade... liberdade para sair de casa e bater de frente com o meu sol azul, minhas árvores cinzas e o céu verde-limão; encontrar com flores falantes, doces flutuantes, e olhar pra frente sem focar tanto nas pessoas. Assim que quero ver o mundo. Mais minha óptica não é de alguém "normal", porque o céu "normalmente" é azul, as árvores verdes, o sol um amarelo ofuscante, - e devo sempre estar atento para as opiniões e impressões que os outros têm de mim.
Por que devo me render as convenções?
Por que devo sempre dar explicações?
Por que me importo tanto com essas questões?
Por quê?

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Vou-me Embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei



Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive



E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada



Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar



E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.


Texto extraído do livro "Bandeira a Vida Inteira", Editora Alumbramento – Rio de Janeiro, 1986, pág. 90

Manuel Bandeira: sua vida e sua obra estão em "Biografias".

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Fluídos


Indo de um corpo a outro, a existência trânsita, através de líquidos, humores. Ele e ela entram em contato, - os pensamentos cruzados, a pele fundida - e se tornam um só. O reconhecimento humano atinge seu clímax, seu apogeu. Antes, separados pelo detalhe do sexo, transformam-se na personalidade sem genitália aparente. Os amantes parecem dançar numa melodia natural - sob estrelas milenares - que já viram tantos outros, bailando. A troca profunda de olhares; os gemidos confundidos com o farfalhar das folhas...o suor respingando, para amenizar o calor dos corpos...a saliva, evidenciando o sabor da volúpia - e por fim, o fim. Separam-se como dois estranhos; os rostos, antes face a face, se repelem, evitando a nudez, agora, desvalorizada com a situação. Voltam a ser dois animais, dois simples e irreconhecíveis seres humanos. Nunca se viram; nem ao menos sabem o nome daquele com quem dividiram um pouco de seu ser; daquele que os completaram. Cada um segue seu curso, e novamente veêm-se solitários no ermo existencial, que deixa lacunas doloridas no âmago. Um ermo que precisa ser povoado, inundado por outros humores, sensações, sentimentos. Por fluídos que façam com que eles se sintam, novamente, vivos.

domingo, 19 de setembro de 2010

bem-me-quer?


A dúvida de não ser desejado;
O medo de ser desprezado;
Vasculhamos respostas, tornando elementos belos, em formas nuas e destituídas de cor;
À procura de uma flor, antes viva - e que jaz agora, morta - por causa de nosso temor;
Extirpamos toda sua beleza, suas pétalas, buscando aquilo que nos convém;
Então a brisa as leva, como leva nossas repetidas palavras também;
Desejando que estas cheguem até aquele que nos inspira admiração;
O começo - bem-me-quer e felicidade, o término - mal-me-quer e decepção;
Mesmo sabendo o resultado, insistimos novamente, ir buscar mais uma flor;
Mesmo sabendo, que aniquilando um lírio, não evitaremos a dor.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cartas


Ela tirou todos aqueles papéis e objetos velhos da gaveta. Cartas, contas, convites, de épocas distintas e passadas, se acumulavam dentro do armário centenário de sua bisavó. Na medida em que jogava no lixo aqueles objetos sem importância, a gaveta ficava mais vazia, nua, mostrando seu aspecto arcaico; a madeira corroída pelos cupins, e o amarelado tornavam-se mais evidentes; o cheiro de bolor inundava suas narinas, como se o passado, que estava ali guardado, tentasse penetrar, de forma intransigente, em seus pensamentos. Qualquer historiador acharia um disparate, desprezar assim, tantos documentos antigos – quantas histórias, segredos, romances não estariam ali presentes? – mas ela não se importava com as querelas que sua avó, bisavó, ou seja lá quem for, tenham tido. De forma inflexível, descartava tudo que julgava ser inútil – um bando de papéis velhos, - pensava ela. Nas últimas gavetas, quando quase todo o trabalho de limpeza estava concluído, ela observou que havia epístolas, não para sua avó, mas para ela, datadas de quando ela ainda era um bebê. A insensibilidade cedeu lugar à curiosidade. Ao invés de, simplesmente deixá-las de lado, passou, então, a lê-las. De carta em carta, foi-se revelando algo que ela nunca havia imaginado – a cada palavra lida, entrava em contato, cada vez mais íntimo, com seus pais. Na verdade, aquelas cartas, escritas por eles, lhe devolvia parte de uma época que a morte, e o orgulho de sua avó haviam roubado. Não chegou a conhecer os seus progenitores; não se lembrava de ter recebido um afago deles; de dizer o clichê, mas o importante “eu amo vocês”. O que tinha de seus pais eram apenas fotografias, que não transmitiam nenhum tipo de sentimento; a imobilidade das formas aprisionadas no retrato faziam-na odiá-los por não permanecerem vivos, fazendo dela uma solitária. O porquê de sua avó ter escondido tantos fatos importantes, tantas memórias, ela nunca virá a saber, e talvez não a desperte interesse, neste momento. A explosão de sensações, de revelações causadas pela cornucópia transbordante das letras, ocupava todo seu consciente, não havendo espaço pra outros questionamentos. As palavras imprimem, através do jogo lógico e semântico das frases, mensagens que a voz não seria capaz de transmitir. Aquelas cartas, descartadas para esvaziar gavetas, agora preenchiam seu coração, transformando suas rachaduras e seu bolor em algo vívido. Os objetos, antes inúteis, agora representavam a própria vida.