quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Tempo de mudança


Bom, eu poderia dizer que nunca mais postei nada aqui, porque estou sem isso que todos chamam de TEMPO. Na verdade, eu o tenho em demasia; todos nós temos. 24 vezes por dia, roda aquele ponteiro comprido do relógio; e a cada vez que ele completa um volta nos dá a sensação de que envelhecemos, e que talvez, deixamos de fazer algo útil, seja para nós mesmos ou para alguém. Ultimamente, vejo que não fiz absolutamente nada altruísta, para ninguém. Em um dia qualquer, da semana passada, vi uma mulher de aspecto simples entrar em um restaurante, pedir comida a um funcionário. O tratamento não foi dos melhores; a resposta que ela ganhou foi, "come as sobras desse prato aí na mesa". Observei tudo em silêncio; não havia muita comida, ou melhor, sobras, no prato. Ela sentou, comeu o pouco que tinha, e saiu. Não sei o que me passou pela cabeça naquele momento; se pensei em crianças africanas perecendo sob o mesmo céu que cobre ricos, pobres, negros, brancos e índios; se me consternei com a situação. Apenas vi tudo com uma ligeira comoção efêmera e hipócrita, que, aliás, sempre esteve em voga na nossa sociedade. Por que não levantei e paguei um almoço praquela moça? - Por que seria uma esmola? Será porque não resolveria os problemas dela, não daria o conforto de que precisava? Que não preencheria seu ego? Tudo bem que sua vida não sofreria uma mudança assim tão drástica. Mas a questão é que vemos as horas passando e esperamos aquele momento que podemos insuflar o peito e dizer: fiz algo, simplesmente. E esse momento passou mais uma vez por mim, e só fiz observar. Certamente, um almoço não era do que ela precisava na vida pra resolver suas moléstias, mas era do que ela necessitava naquele momento. Não somos iguais nos 1440 minutos do dia. Não apetecemos das mesmas coisas sempre; não temos a mesma expressão, as mesmas ações. Somos tão inconstantes, tão imprevisíveis, até nas ações mais previsíveis. Não precisei de uma volta completa do ponteiro para que a vida me desse mais um tapa, bastou apenas 3 minutos - o tempo que a mulher precisou para comer.

"Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem." Marcel Proust

sábado, 16 de outubro de 2010

Não digam nunca: isso é natural


"Nós pedimos com insistência:
Não digam nunca: isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada dia.
Numa época em que reina a confusão.
Em que corre sangue,
Em que se ordena a desordem,
Em que o arbitrário tem força de lei,
em que a humanidade se desumaniza.
Não digam nunca: isso é natural!"

Apud PEIXOTO, F. Brecht. Vida e Obra, p. 126.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Por quê?


Por que me olham desse jeito?
Por que sempre exigem minha simpatia?
Por que não vêem a minha agonia?
Por que tenho que ficar sempre feliz?
Aliás, Por que devo ser feliz?
Por que não posso ficar zangado - ou simplesmente - inalterado?
Devo sempre expressar-me, sempre sorrir, sempre ser amigável?
Por que não posso ser hipócrita e sincero? Ser letárgico e austero?
Tenho uma própria ideia do que sou, ou do que acho ser?
Faço minhas escolhas, ou me engano fazendo, na verdade, as escolhas dos outros?
O que quero são repostas que me dêem liberdade... liberdade para sair de casa e bater de frente com o meu sol azul, minhas árvores cinzas e o céu verde-limão; encontrar com flores falantes, doces flutuantes, e olhar pra frente sem focar tanto nas pessoas. Assim que quero ver o mundo. Mais minha óptica não é de alguém "normal", porque o céu "normalmente" é azul, as árvores verdes, o sol um amarelo ofuscante, - e devo sempre estar atento para as opiniões e impressões que os outros têm de mim.
Por que devo me render as convenções?
Por que devo sempre dar explicações?
Por que me importo tanto com essas questões?
Por quê?

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Vou-me Embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei



Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive



E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada



Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar



E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.


Texto extraído do livro "Bandeira a Vida Inteira", Editora Alumbramento – Rio de Janeiro, 1986, pág. 90

Manuel Bandeira: sua vida e sua obra estão em "Biografias".

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Fluídos


Indo de um corpo a outro, a existência trânsita, através de líquidos, humores. Ele e ela entram em contato, - os pensamentos cruzados, a pele fundida - e se tornam um só. O reconhecimento humano atinge seu clímax, seu apogeu. Antes, separados pelo detalhe do sexo, transformam-se na personalidade sem genitália aparente. Os amantes parecem dançar numa melodia natural - sob estrelas milenares - que já viram tantos outros, bailando. A troca profunda de olhares; os gemidos confundidos com o farfalhar das folhas...o suor respingando, para amenizar o calor dos corpos...a saliva, evidenciando o sabor da volúpia - e por fim, o fim. Separam-se como dois estranhos; os rostos, antes face a face, se repelem, evitando a nudez, agora, desvalorizada com a situação. Voltam a ser dois animais, dois simples e irreconhecíveis seres humanos. Nunca se viram; nem ao menos sabem o nome daquele com quem dividiram um pouco de seu ser; daquele que os completaram. Cada um segue seu curso, e novamente veêm-se solitários no ermo existencial, que deixa lacunas doloridas no âmago. Um ermo que precisa ser povoado, inundado por outros humores, sensações, sentimentos. Por fluídos que façam com que eles se sintam, novamente, vivos.

domingo, 19 de setembro de 2010

bem-me-quer?


A dúvida de não ser desejado;
O medo de ser desprezado;
Vasculhamos respostas, tornando elementos belos, em formas nuas e destituídas de cor;
À procura de uma flor, antes viva - e que jaz agora, morta - por causa de nosso temor;
Extirpamos toda sua beleza, suas pétalas, buscando aquilo que nos convém;
Então a brisa as leva, como leva nossas repetidas palavras também;
Desejando que estas cheguem até aquele que nos inspira admiração;
O começo - bem-me-quer e felicidade, o término - mal-me-quer e decepção;
Mesmo sabendo o resultado, insistimos novamente, ir buscar mais uma flor;
Mesmo sabendo, que aniquilando um lírio, não evitaremos a dor.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cartas


Ela tirou todos aqueles papéis e objetos velhos da gaveta. Cartas, contas, convites, de épocas distintas e passadas, se acumulavam dentro do armário centenário de sua bisavó. Na medida em que jogava no lixo aqueles objetos sem importância, a gaveta ficava mais vazia, nua, mostrando seu aspecto arcaico; a madeira corroída pelos cupins, e o amarelado tornavam-se mais evidentes; o cheiro de bolor inundava suas narinas, como se o passado, que estava ali guardado, tentasse penetrar, de forma intransigente, em seus pensamentos. Qualquer historiador acharia um disparate, desprezar assim, tantos documentos antigos – quantas histórias, segredos, romances não estariam ali presentes? – mas ela não se importava com as querelas que sua avó, bisavó, ou seja lá quem for, tenham tido. De forma inflexível, descartava tudo que julgava ser inútil – um bando de papéis velhos, - pensava ela. Nas últimas gavetas, quando quase todo o trabalho de limpeza estava concluído, ela observou que havia epístolas, não para sua avó, mas para ela, datadas de quando ela ainda era um bebê. A insensibilidade cedeu lugar à curiosidade. Ao invés de, simplesmente deixá-las de lado, passou, então, a lê-las. De carta em carta, foi-se revelando algo que ela nunca havia imaginado – a cada palavra lida, entrava em contato, cada vez mais íntimo, com seus pais. Na verdade, aquelas cartas, escritas por eles, lhe devolvia parte de uma época que a morte, e o orgulho de sua avó haviam roubado. Não chegou a conhecer os seus progenitores; não se lembrava de ter recebido um afago deles; de dizer o clichê, mas o importante “eu amo vocês”. O que tinha de seus pais eram apenas fotografias, que não transmitiam nenhum tipo de sentimento; a imobilidade das formas aprisionadas no retrato faziam-na odiá-los por não permanecerem vivos, fazendo dela uma solitária. O porquê de sua avó ter escondido tantos fatos importantes, tantas memórias, ela nunca virá a saber, e talvez não a desperte interesse, neste momento. A explosão de sensações, de revelações causadas pela cornucópia transbordante das letras, ocupava todo seu consciente, não havendo espaço pra outros questionamentos. As palavras imprimem, através do jogo lógico e semântico das frases, mensagens que a voz não seria capaz de transmitir. Aquelas cartas, descartadas para esvaziar gavetas, agora preenchiam seu coração, transformando suas rachaduras e seu bolor em algo vívido. Os objetos, antes inúteis, agora representavam a própria vida.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Que a noite termine...


"Apoiava brandamente as faces contra as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como rostos da nossa infância. Riscava um fósforo para ver o relógio. Quase meia-noite. É o momento em que o enfermo, que teve de viajar e ir dormir num hotel desconhecido, acordado por uma crise, se alegra ao distinguir debaixo da porta um raio de luz. Felicidade! Já é dia! Daqui a pouco os criados vão se levantar, poderá tocar a campainha, virão prestar-lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá coragem para suportar o sofrimento. Ainda agora pensou ouvir passos; os passos aproximam e logo se afastam. E o fio de luz que estava sobre a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o ultimo criado já se retirou e é preciso ficar a noite inteira sofrendo sem remédio."

Trecho de No Caminho de Swann, de Marcel Proust

domingo, 5 de setembro de 2010

Não fugirei


Uma manhã curiosamente insólita; longinquamente, ouvia-se uns poucos pássaros que entoavam uma melodia nem um pouco agradável; era algo lamurioso, como um pranto. O céu também chorava; a fina chuva emprestava ao solo ocre um cheiro nauseabundo. Não havia sol, nem claridade; a umidade penetrante invadia todo o cômodo, tornando-o pesado, sombrio e repugnante. Tudo permanecia imóvel, estático, suspenso no tempo. Por um momento, pensei que a vida tinha se dissipado. Não havia mais homens, animais; nem leis ou convenções morais; o mundo voltara a ser igual aquele de bilhões de anos atrás, sem pré-julgamentos e condenações. O devaneio falacioso foi interrompido pelo toque do telefone – uma invenção humana utilíssima para lembrar-nos freqüentemente de quanto o homem pode ser desprezível, só pelo seu tom de voz. Era uma notícia sobre alguém que ficara no passado – alguém que nunca mais eu ousara em pensar. Era sobre o meu pai; estava morto. A conversa foi curta; a pessoa prestou-me condolências, trocamos algumas palavras, e me informou sobre o dia, hora e local do enterro. Desliguei o telefone e deitei-me. A princípio, não senti nada, absolutamente nada sobre a morte daquele homem. Mas, repentinamente, - ao ver um fio de cabelo ondulando no ar, livre, sem destino aparente, sem parecer se importar com os obstáculos - revi todo o meu passado de clausura, de opressão e principalmente, a figura daquele que foi meu maior algoz. Tudo emergiu; aquilo que sempre fiz questão de esquecer voltava em lembranças amargas e com elas meus medos, frustrações, angústias e incertezas. Como pode, mesmo após a morte, ele me afetar assim? Pensei que o tempo e a distância tivessem me libertado do universo do qual fazia parte, mas o que fiz foi fugir; fugir ao invés de enfrentar. Era mais cômodo virar as costas, correr e esquecer... Mas um simples telefonema trouxe-me de volta a realidade que nunca aceitei – eu era um fracassado. Mesmo longe das críticas, das imposições paternas, não consegui realizar nada do que queria; não tenho amigos, nunca me casei, nem consegui escrever um grande livro. Tudo que eu desejava era provar pra mim e para ele, que poderia me tornar um grande homem vivendo ao meu modo, sob as minhas escolhas. Mas falhei; falhei por recear outras críticas, de ser subjugado novamente; por projetar nas outras pessoas a imagem daquele homem, e então, fugia delas. Mas agora que ele está morto, pouco importa se sou ou não um homem; pouco importa as críticas, o meu medo não me levou senão a uma prisão que se iniciou na infância e perdura até hoje. Irei ao enterro e o encararei após tantos anos; mesmo que a morte o tenha calado e ele não possa ouvir, eu falarei; posso ser um fracassado, mais desta vez, não fugirei.

sábado, 28 de agosto de 2010

A angústia e o nada


A angústia é o caráter típico e próprio da vida. A vida é angustiosa. E por que é angustiosa a vida? A angústia da vida tem duas facetas. De um lado, é necessidade de viver, é afã de viver, é anseio de ser, de continuar sendo, para que no futuro seja o presente. Mas de outro lado, esse anseio de ser leva dentro o temor de não ser, o temor de deixar de ser, o temor do nada. Por isso, a vida é, de um lado, anseio de ser e, de outro lado, temor do nada. Essa é a angústia. Pois o nada amedronta o homem.

Manuel García Morente
Fundamentos de filosofia, p. 331.

sábado, 21 de agosto de 2010

Ondas e devaneios


Lily continuou guardando os pincéis, erguendo e baixando os olhos. Ao levantar a cabeça, ela via o sr. Ramsay caminhando em sua direção, num andar incerto, descuidado, o ar ausente, distante. Um tanto hipócrita?, repetiu ela. Ah, não, o mais sincero dos homens, o mais honesto (lá estava ele), o melhor; mas, baixando os olhos, pensou: ele é egoísta, tirânico, injusto; e continuou com os olhos baixos propositadamente, pois somente assim poderia manter-se imperturbável entre os Ramsays. No momento em que ela os erguia e os via, sentia-se inundada pelo que chamava de "estado do amor". Passavam a fazer parte do universo irreal, mas penetrante, que é o mundo visto através dos olhos do amor. O céu se liga a eles; os pássaros cantavam através deles. E, o que era ainda mais emocionante, além disso ela sentia - ao ver o sr. Ramsay derrotado, retirando-se abatido, e a sra. Ramsay sentada com James à janela e a nuvem movendo-se e a árvore dobrando-se - que a VIDA, por ser composta de pequenos incidentes insignificantes que uma pessoa vive um a um, se tornava contínua e completa, como uma ONDA que a tivesse alçado e depois a lançasse de novo na areia da praia, ao quebrar-se.

Trecho de Ao Farol, de Virginia Woolf

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Negação


Não
Como um sim;
Um sinal
Não?
Como assim?
Um final?
Não!
Ainda assim
Menos mal

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A corrupção nossa de cada dia




Será que há solução para a corrupção? O Brasil se livrará desta mazela que o acompanha deste à época em que os portugueses puseram as mãos no território tupiniquim? A resposta é obvia – Não. Não enquanto votarmos nos mesmos políticos; é um verdadeiro absurdo vermos nos noticiários, escândalos envolvendo figuras conhecidas nos livros de historia e ainda assim eleger tais governantes. José Sarney que o diga; Desde a época da ditadura, ele é figura carimbada no meio político e perdura nela até hoje. Como presidente foi um fiasco total; Os planos Cruzado só ajudaram a disseminar a pobreza em grande parte das classes sociais; congelaram-se preços, salários e a inflação chegou a ponto alarmante, cerca de 86% no final de seu mandato. Ai já existem motivos de sobra pra não votar. Mas, ele atualmente só é o PRESIDENTE DO SENADO; o que me deixa mais perplexo é ver tantas notícias (e são recentes, saídas do forno) à respeito de irregularidades envolvendo seu nome – nepotismo, funcionários fantasmas, uso indevido de dinheiro público – e nenhuma providência foi tomada, nenhuma punição. Um absurdo! Vivemos mesmo em uma democracia? Talvez, na teoria. E volto com a mesma resposta - Não há solução. Não enquanto a imprensa brasileira for oportunista, partidária, pretensiosa e seletiva. Jornais e revistas de grande destaque nacional já foram protagonistas de vexames históricos; Globo e A Veja são duas especialistas no assunto. A primeira é descaradamente parcial; a segunda também. Pra que eu saiba, um dos primeiros pontos no jornalismo é a imparcialidade; é mostrar os fatos sem distorcê-los, sem dar uma opinião formada, pronta pra ser mastigada pela população acrítica. Mas os meios de comunicação posam de investigadores e denunciantes das arbitrariedades dos políticos, porém são seus maiores apoios. A Globo já elegeu a maior vergonha da era pós-ditadura: Fernando Collor. Sempre com um jogo de sensacionalismo, criticou o candidato da época Lula de todas as formas; forjou resultados como o Vox Populi, além de transmitir um debate editado onde o candidato Collor foi o vencedor. A Veja por sua vez, colocou capas e reportagens em que o Collor, que aliás é também figura da política atual, aparecia como o inimigo dos Marajás e blá blá blá...Collor venceu as eleições e tempos depois houve o impeachment do candidato. Bom, isso é só um das muitas razões para não se confiar em certos jornais de esgoto. Recentemente, o que veio à tona foi a entrevista em que a candidata Dilma foi simplesmente massacrada pelo entrevistador, nosso lindo e arrogante apresentador William Bonner. As perguntas, por incrível que pareça, tinham mais importância que as próprias respostas; mal a candidata abria a boca, o charmoso de mechas brancas já atacava de forma descarada a candidata. Era o Faustão, a Hebe, ou um jornalista aclamado por meio país que estava naquela bancada? O mesmo ocorreu com a Marina Silva; nada de propostas, só críticas e críticas... ai ai, ainda bem que temos a internet com seu leque variado de opiniões e jornalistas que primam pela equidade e sensatez; isso me dá um lampejo de esperança. Mas mesmo assim respondo novamente – Não. Não enquanto boa parte da população for massificada, acrítica, analfabeta (funcional ou não) e egoísta. Se os políticos fazem o que faz é porque alguém os colocou lá. E esse alguém somos nós. Antes de votar, temos que procurar analisar cada uma de nossas escolhas; elas é que vão decidir o nosso futuro. Tudo está ligado à política, portanto é de extrema importância votar consciente, pensando nos interesses coletivos da nação. Projetos como do FICHA LIMPA e as melhorias educacionais (mesmo que irrisórias), fazem meu otimismo como cidadão ser elevado e me leva a crer que talvez – Sim, nós podemos acabar, mesmo que aos poucos, com esta corrupção. Mas é preciso, primeiro, tirá-la de nosso cotidiano, de nossa cultura: temos que desbanalizá-la.

domingo, 8 de agosto de 2010

Deus e a merda



"Quando era garoto e folheava o Antigo Testamento para crianças, ilustrado com gravuras de Gustave Doré, via nele o bom Deus em cima de uma nuvem. Era um velho senhor, tinha olhos, um nariz, uma longa barba, e eu dizia a mim mesmo que, como tinha boca, devia comer. Se comia, devia ter intestinos. Mas essa idéia logo me assustava, por que, apesar de pertencer a uma família pouco católica, sentia o que havia de sacrílegio nessa idéia dos intestinos do Bom Deus.
Sem o menor preparo teológico, a criança que eu era naquela época compreendia espontaneamente uma incompatibilidade entre a Merda e deus, e, por dedução, percebia a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Das duas uma: ou o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus - e então Deus tem intestinos -, ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele.
Os antigos gnósticos pensavam tão claro como eu aos cinco anos. Para resolver esse maldito problema, Valenti, Grão-Mestre da Gnose do século II, afirmava que Jesus "comia, bebia, mas nao defecava".
A Merda é um problema teológico mais penoso que o mal. Deus dá liberdade ao homem e podemos admitir que ele não seja o responsável pelos CRIMES da HUMANIDADE. Mas a RESPONSABILIDADE pela MERDA cabe intereiramente àquele que criou o homem, somente a ele."

Retirado de A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O espelho



Quem é esse homem do qual não consigo tirar os olhos? O que me atrai nele? O seu rosto esguio, seus lábios secos sem movimento, ou o olhar distante? Fito-o e ao mesmo tempo não consigo encará-lo. Parece-me triste, talvez magoado, desolado. Um ser curiosamente paradoxal; despertava em mim asco e compaixão, ao mesmo tempo. Notei que tinha os cabelos despenteados; o corpo repulsivo era coberto de sujeira – há quanto tempo será que não toma banho? Ele se moveu, após tanto tempo estático; baixou a cabeça; deixei de vê-lo por um momento; o chão estava fétido, asqueroso tal qual o homem que eu observava. Voltei e ele ainda estava lá; seu semblante tinha algo de familiar. Será que o conhecia? Não, absolutamente; onde eu poderia ter conhecido tal aberração? Seu aspecto dava-lhe algo de animalesco, inumano. Aliás, aquilo que via não poderia ser chamada de humano; era imoral, vil demais. Entretanto, seduzia-me; seu jeito, sua aura misteriosa me hipnotizava. Uma força etérea suspensa no ar me forçava a ver através de seus olhos, mas eu não conseguia. Tinha medo do que poderia encontrar. Os olhos, talvez fossem o único ponto daquele corpo nu em que a verdade estaria presente sem deformações. Mas que Verdade era essa? A Verdade sobre sua alma; eu queria ver se aquela coisa possuía uma alma, porém tinha medo. O que eu enxergava era físico; sem uma alma, eu tornava-me superior a ele; eu podia ter uma, ele não. Resolvi encará-lo; sabia que sairia vitorioso; o humilhado aqui era ele, não eu. No momento que vi seu olhar, ele também me fitava, e de uma maneira cruel, inquisitória, como se procurasse algo em mim. Essa afronta irritou-me; a cólera tomou as rédeas da situação, quando vi já tinha golpeado o monstro. Senti-me aliviado; ele havia sumido; sim, havia ganhado a disputa – mas, que dor é essa, que me consome? – minha mão sangra, e minha dor é real. Ele me atingiu? Não, impossível; era como se algo tivesse refletido o meu próprio golpe. Baixei a cabeça, e vi. Vi que o homem ainda estava lá, agora fragmentado; não o via em sua plenitude, mas em partes. Peguei um pedaço de espelho do chão e vi novamente o seu olhar; nesse fragmento vi o todo. Sim, ele tinha uma alma; vi que era humano. Aquele homem era eu.

sábado, 31 de julho de 2010

Suspiro


Apanhei essa idéia no ar e logo tomei as palavras que me vieram para a fixar, com receio que me fuja.
Eagora que ela está morta por causa destas palavras estéreis, flutua sobre este trapo verbal _ e, ao olhá-la, lembro com dificuldade ainda como pude ter a felicidade de agarrar esse pássaro

Aforismo 298 de "A Gaia Ciência".

Receita pra lavar palavra suja





Mergulhar a palavra suja em água sanitária.

Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.

Algumas palavras quando alvejadas ao sol

adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.

Existem outras, e a palavra amor é uma delas,

que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar

e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.

São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.

Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.

Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.

Agora nunca vi palavra tão suja como perda.

Perda e morte na medida em que são alvejadas

soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,

que é capaz de esvaziar o vigor da língua.

O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho

em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer

é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente

sabão em pó e máquina de lavar.

O perigo neste caso é misturar palavras que mancham

no contato umas com as outras. Culpa, por exemplo,

a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.

Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo,

sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode,

o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.

Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.

Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras

sob o risco de perderem o sentido.

A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,

produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.

Muito importante na arte de lavar palavras

é saber reconhecer uma palavra limpa.

Conviva com a palavra durante alguns dias.

Deixe que se misture em seus gestos, que passeie

pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite,

não a seu lado mas sobre seu corpo.

Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,

prolifera em toda sua possibilidade.

Se puder suportar essa convivência até não mais

perceber a presença dela,

então você tem uma palavra limpa.

Uma palavra limpa é uma palavra possível.


Viviane Mosé
Poema do livro Pensamento do Chão, poemas em prosa e verso.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Um dia qualquer...




Era um dia qualquer; o mesmo sol, as mesmas tarefas cotidianas – acordar, preparar o café, esperar meu marido ir trabalhar – e finalmente respirar um ar menos pesado. Tudo ao redor de Ricardo ficava excessivamente embaçado, nada era claro, natural. Um lusco-fusco; nem palpável, nem abstrato. Era assim que eu, também, via o meu casamento. Já havia passado dez anos. Quantas lágrimas derramadas, quantas risadas compartilhadas, quantas portas batidas nesse tempo? Certamente muitas. Casei-me na esperança de ser FELIZ; sim, de encontrar a felicidade. Mas o que significava pra mim FELICIDADE? Talvez, não ficar sozinha, deslocada; casei-me, e nesses dez anos, nunca me senti tão só. Passo o dia remoendo as palavras a serem ditas na hora do jantar – nos víamos somente pelas manhãs e a noite – mas era apenas ele que balbuciava umas poucas, algumas desconexas, outras que não me despertavam interesse em ouvir. Eu não falava por medo, não sabia como iniciar uma conversa, principalmente, se o assunto dizia respeito a nós. Porém, hoje seria diferente; havíamos de nos falar; não suportaria o silêncio; não deixaria que ele corroesse o meu casamento. Ricardo era tudo que eu tinha; abandonei carreira, família por ele. Era ele que me completava. Fui à feira, como de costume; adorava ir até lá. O movimento de mãos dos feirantes, suas vozes estridentes; aquele vai e vem de pessoas, de mulheres – minhas confidentes – fitava seus olhos e via suas almas; entendíamos-nos, e isso era tudo. Aquele borbulhar de vidas excitava-me – quando foi a última vez que fui a uma festa? Ah...fazia tanto tempo. As manhãs passam numa rapidez incrível; já as minhas tardes parecem se estender até a eternidade. Costumava matar minha letargia lendo algum romance barato, mas nem isso hoje me tira do tédio; viver está sendo um verdadeiro fardo. A noite se aproxima, e com ela, toda sua imponência, sua magia. O ar estava menos denso; um frescor roçava o meu rosto, e eu me inundava em frenesi. Preparei a mesa para o jantar e vesti-me adequadamente à ocasião. Seria a nossa noite, a noite dos amantes; nós nos reencontraríamos após tanto tempo distantes. Falaríamos sem reservas. Tudo estava claro, até ele chegar. O lusco-fusco voltava e um corpo penetrava através da porta; um corpo destituído de tato, de voz. Ele se dirigiu ao quarto; eu o segui. Precisamos conversar, disse-lhe; ele secamente respondeu, Depois, estou cansado. Hesitei; após um suspiro, insisti, Precisamos conversar; então olhou-me; olhou-me com um olhar que dilacera o peito, que faz a voz ser extinta; ele me olhava como quem se olha para o nada, eu era o nada. Voltou-se e deitou. Eu, em seguida fiz o mesmo; ainda vestida para a noite dos amantes, deitei; senti um gosto salgado, talvez amargo na boca. Não sei dizer se eram as palavras, que há tanto tempo guardava, se dissolvendo, ou se eram as minhas lágrimas, que acabara de tragar.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Voltando à Roma decadente


Há pouco mais de dois milênios atrás, o poeta romano Horácio escrevia sua obra Carminum liber primus(Odes I), e, acredito eu, não passava por sua cabeça que um trecho ali escrito fosse sobreviver por tantos anos e a tantos agentes culturais erosivos, chegando a ser entoado por um número de bocas inimaginavelmente superior ao número de pessoas que habitavam a Roma antiga àquele período.

“Colhe o instante, sem confiar no amanhã” (carpe diem quam minimum credula postero) foi cunhado por Horácio quando a República Romana demonstrava sinais de decadência com sucessivas guerras civis e uma instabilidade social generalizada. A perspectiva de vida, sob aquelas condições e perturbada pelas incessantes lutas sociais, era mínima, conduzindo os citadinos a condições extremas, onde a esperança era um luxo, e o medo uma sabedoria; como bem aconselha no mesmo trecho Horácio: “sê sábia, filtra o vinho e encurta a esperança”.

“Carpe diem” hoje, embora pronunciado em toda esquina, não diz absolutamente nada, perdeu todo o sentido talhado pelo epicurista Horácio."Ademais, ninguém consegue acreditar honestamente que não haverá amanhã – ou agir como se não houvesse – sem um motivo razoável como um acidente, uma bomba ou uma arma apontada à cabeça. Se fôssemos tomados pela idéia de aproveitar o dia como se não houvesse amanhã, provavelmente nos embrenharíamos em alguma patetice suicida da qual, caso sobrevivêssemos, nos arrependeríamos amargamente numa cadeia ou numa cadeira de rodas”.

Aos adeptos desta filosofia, peço apenas que antes de abraçar a poesia envolvente de Horácio, reparem naquilo que realmente funciona, não as palavras escritas, mas a mensagem de desespero contida no texto;podar as esperanças para que o peso das expectativas não nos esmague é uma atitude covarde e fútil. Carpe Diem nunca fez tão pouco sentido como quando dito por um jovem em pleno século XXI.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Cota Zero

STOP.
A vida parou
ou foi o automóvel?

Carlos Drummond de Andrade

Viver plenamente ou resignar-se?






Não faz muito tempo que eu assisti a um dos mais densos, poéticos e sensacionais filmes brasileiros: Lavoura Arcaica, dirigido por Luiz Fernando Carvalho, e baseado no livro homônimo de Raduan Nassar. A película aborda tabus e temas de profunda dimensão humana, como a família e as relações de poder entre o "Pai" autoritário, que luta pela estabilidade de sua prole, segundo seus princípios, baseados principalmente na religião, no moralismo; a mulher submissa, e por fim, os filhos, últimos na hierarquia familiar, os quais cabiam as funções de obediência e respeito ao temido "pater familias".
Foi impossível, durante e após as 2 horas e 45 minutos de duração do longa, não analisar e refletir sobre a condição do protagonista e ovelha negra André, que se vê em uma contradição da qual irá esmagá-lo até o âmago de seu ser: a sua criação arraigada à costumes arcaicos e o desejo carnal que nutre por sua irmã Ana. O incesto seria a quebra do fio que unia a família. Era inconcebível continuar as relaçoes cotidianas após tal baque, e isso faz com que o jovem garoto fuja, corra, tentando, de certa forma, manter as raízes pôdres que sustentavam a casa na iminência do desmonoramento, e a não negar o pecaminoso ato de apetecer sua irmã.
A fuga misteriosa de André, e até mesmo a volta, depois de seu irmão Pedro ir buscá-lo, é a escolha de muitos homens e mulheres que não conseguem se desvencilhar deste primeiro círculo social, que é a família, devido seu forte poder ideológico. Vontades são impostas, convenções estigmatizam e limitam; o que prevalece é a escolha do patriarca, ou da "moral", que muitas vezes é a mais pura imoralidade. O incesto entra metaforicamente como tudo aquilo que desafia esse estereótipo de família tradicional, onde o pai é na verdade um ditador, sufocando os filhos.
Pode-se fugir momentaneamente como André, ou até mesmo eternamente, mas viverá sempre preso em um mundo vazio, artificial; e pra que? Vivemos a partir de nossas escolhas, nossos atos, ou sendo controlados por tudo que nos é alheio? Isso é estar condenado a um amor platônico consigo mesmo. Sentir a paixão de sobreviver prevalecer sobre o tradicional, renegar a mesquinharia cultural ao qual se está fadado desde o nascimento: assim poderemos, ao menos, tentar estarmos plenamente vivos. Somos humanos, nao marionetes.

Balada do Cárcere de Reading


O casaco escarlate não usou,
Pois sangue e vinho são vermelhos;
E sangue e vinho havia em suas mãos
Quando prisioneiro foi feito,
Deitado junto à mulher morta a quem amava
E assassinara em seu leito.

Caminhava entre os Homens Condenados
Com roupa gasta e cor de cinza ;
Um gorro de críquete na cabeça,
E passo ligeiro e jovial
Mas nunca homem vi que contemplasse
Tão ansioso a luz do dia.

Eu nunca homem vi que contemplasse
Com tão embevecido olhar
Aquela puequenina tenda azul
Que os presos chamam firmamento,
E toda errante nuvem que passava
Com suas velas prateadas

Com outros condenados caminhava
Dentro de um círculo semelhante,
E grande ou pequeno imaginava
O crime que ele cometera,
Quando alguém sussurrou atrás de mim:
"Aquele vai ser enforcado".

Cristo! As próprias paredes da prisão eu vi
Girando a meu redor
E o céu sobre a cabeça transformou-se em elmo
De um aço abrasador;
E, embora eu fosse alma a sofrer,
Já nem sequer sentia a minha dor.

Sabia qual o pensamento perseguido
Que lhe estugava o andar,
E por que demonstrava, ao ver radiante o dia,
Tanta angústia no olhar;
O homem matara a coisa amada,e ora devia
Com a morte pagar.

Apesar disso - escutem bem - todos os homens
Matam a coisa amada;
Com galanteio alguns o fazem, enquanto outros
Com face amargurada;
Os covardes o fazem com um beijo,
Os bravos, com a espada!

Um assassina o seu amor na juventude,
Outro, quando ancião;
Com as mãos da Luxúria este estrangula, aquele
Empresta do Ouro a mão;
Os mais gentis usam a faca, porque frios
Os mortos logo estão.

Trecho do poema escrito por Oscar Wilde em 1898