sábado, 31 de julho de 2010

Suspiro


Apanhei essa idéia no ar e logo tomei as palavras que me vieram para a fixar, com receio que me fuja.
Eagora que ela está morta por causa destas palavras estéreis, flutua sobre este trapo verbal _ e, ao olhá-la, lembro com dificuldade ainda como pude ter a felicidade de agarrar esse pássaro

Aforismo 298 de "A Gaia Ciência".

Receita pra lavar palavra suja





Mergulhar a palavra suja em água sanitária.

Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.

Algumas palavras quando alvejadas ao sol

adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.

Existem outras, e a palavra amor é uma delas,

que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar

e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.

São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.

Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.

Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.

Agora nunca vi palavra tão suja como perda.

Perda e morte na medida em que são alvejadas

soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,

que é capaz de esvaziar o vigor da língua.

O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho

em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer

é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente

sabão em pó e máquina de lavar.

O perigo neste caso é misturar palavras que mancham

no contato umas com as outras. Culpa, por exemplo,

a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.

Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo,

sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode,

o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.

Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.

Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras

sob o risco de perderem o sentido.

A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,

produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.

Muito importante na arte de lavar palavras

é saber reconhecer uma palavra limpa.

Conviva com a palavra durante alguns dias.

Deixe que se misture em seus gestos, que passeie

pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite,

não a seu lado mas sobre seu corpo.

Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,

prolifera em toda sua possibilidade.

Se puder suportar essa convivência até não mais

perceber a presença dela,

então você tem uma palavra limpa.

Uma palavra limpa é uma palavra possível.


Viviane Mosé
Poema do livro Pensamento do Chão, poemas em prosa e verso.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Um dia qualquer...




Era um dia qualquer; o mesmo sol, as mesmas tarefas cotidianas – acordar, preparar o café, esperar meu marido ir trabalhar – e finalmente respirar um ar menos pesado. Tudo ao redor de Ricardo ficava excessivamente embaçado, nada era claro, natural. Um lusco-fusco; nem palpável, nem abstrato. Era assim que eu, também, via o meu casamento. Já havia passado dez anos. Quantas lágrimas derramadas, quantas risadas compartilhadas, quantas portas batidas nesse tempo? Certamente muitas. Casei-me na esperança de ser FELIZ; sim, de encontrar a felicidade. Mas o que significava pra mim FELICIDADE? Talvez, não ficar sozinha, deslocada; casei-me, e nesses dez anos, nunca me senti tão só. Passo o dia remoendo as palavras a serem ditas na hora do jantar – nos víamos somente pelas manhãs e a noite – mas era apenas ele que balbuciava umas poucas, algumas desconexas, outras que não me despertavam interesse em ouvir. Eu não falava por medo, não sabia como iniciar uma conversa, principalmente, se o assunto dizia respeito a nós. Porém, hoje seria diferente; havíamos de nos falar; não suportaria o silêncio; não deixaria que ele corroesse o meu casamento. Ricardo era tudo que eu tinha; abandonei carreira, família por ele. Era ele que me completava. Fui à feira, como de costume; adorava ir até lá. O movimento de mãos dos feirantes, suas vozes estridentes; aquele vai e vem de pessoas, de mulheres – minhas confidentes – fitava seus olhos e via suas almas; entendíamos-nos, e isso era tudo. Aquele borbulhar de vidas excitava-me – quando foi a última vez que fui a uma festa? Ah...fazia tanto tempo. As manhãs passam numa rapidez incrível; já as minhas tardes parecem se estender até a eternidade. Costumava matar minha letargia lendo algum romance barato, mas nem isso hoje me tira do tédio; viver está sendo um verdadeiro fardo. A noite se aproxima, e com ela, toda sua imponência, sua magia. O ar estava menos denso; um frescor roçava o meu rosto, e eu me inundava em frenesi. Preparei a mesa para o jantar e vesti-me adequadamente à ocasião. Seria a nossa noite, a noite dos amantes; nós nos reencontraríamos após tanto tempo distantes. Falaríamos sem reservas. Tudo estava claro, até ele chegar. O lusco-fusco voltava e um corpo penetrava através da porta; um corpo destituído de tato, de voz. Ele se dirigiu ao quarto; eu o segui. Precisamos conversar, disse-lhe; ele secamente respondeu, Depois, estou cansado. Hesitei; após um suspiro, insisti, Precisamos conversar; então olhou-me; olhou-me com um olhar que dilacera o peito, que faz a voz ser extinta; ele me olhava como quem se olha para o nada, eu era o nada. Voltou-se e deitou. Eu, em seguida fiz o mesmo; ainda vestida para a noite dos amantes, deitei; senti um gosto salgado, talvez amargo na boca. Não sei dizer se eram as palavras, que há tanto tempo guardava, se dissolvendo, ou se eram as minhas lágrimas, que acabara de tragar.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Voltando à Roma decadente


Há pouco mais de dois milênios atrás, o poeta romano Horácio escrevia sua obra Carminum liber primus(Odes I), e, acredito eu, não passava por sua cabeça que um trecho ali escrito fosse sobreviver por tantos anos e a tantos agentes culturais erosivos, chegando a ser entoado por um número de bocas inimaginavelmente superior ao número de pessoas que habitavam a Roma antiga àquele período.

“Colhe o instante, sem confiar no amanhã” (carpe diem quam minimum credula postero) foi cunhado por Horácio quando a República Romana demonstrava sinais de decadência com sucessivas guerras civis e uma instabilidade social generalizada. A perspectiva de vida, sob aquelas condições e perturbada pelas incessantes lutas sociais, era mínima, conduzindo os citadinos a condições extremas, onde a esperança era um luxo, e o medo uma sabedoria; como bem aconselha no mesmo trecho Horácio: “sê sábia, filtra o vinho e encurta a esperança”.

“Carpe diem” hoje, embora pronunciado em toda esquina, não diz absolutamente nada, perdeu todo o sentido talhado pelo epicurista Horácio."Ademais, ninguém consegue acreditar honestamente que não haverá amanhã – ou agir como se não houvesse – sem um motivo razoável como um acidente, uma bomba ou uma arma apontada à cabeça. Se fôssemos tomados pela idéia de aproveitar o dia como se não houvesse amanhã, provavelmente nos embrenharíamos em alguma patetice suicida da qual, caso sobrevivêssemos, nos arrependeríamos amargamente numa cadeia ou numa cadeira de rodas”.

Aos adeptos desta filosofia, peço apenas que antes de abraçar a poesia envolvente de Horácio, reparem naquilo que realmente funciona, não as palavras escritas, mas a mensagem de desespero contida no texto;podar as esperanças para que o peso das expectativas não nos esmague é uma atitude covarde e fútil. Carpe Diem nunca fez tão pouco sentido como quando dito por um jovem em pleno século XXI.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Cota Zero

STOP.
A vida parou
ou foi o automóvel?

Carlos Drummond de Andrade

Viver plenamente ou resignar-se?






Não faz muito tempo que eu assisti a um dos mais densos, poéticos e sensacionais filmes brasileiros: Lavoura Arcaica, dirigido por Luiz Fernando Carvalho, e baseado no livro homônimo de Raduan Nassar. A película aborda tabus e temas de profunda dimensão humana, como a família e as relações de poder entre o "Pai" autoritário, que luta pela estabilidade de sua prole, segundo seus princípios, baseados principalmente na religião, no moralismo; a mulher submissa, e por fim, os filhos, últimos na hierarquia familiar, os quais cabiam as funções de obediência e respeito ao temido "pater familias".
Foi impossível, durante e após as 2 horas e 45 minutos de duração do longa, não analisar e refletir sobre a condição do protagonista e ovelha negra André, que se vê em uma contradição da qual irá esmagá-lo até o âmago de seu ser: a sua criação arraigada à costumes arcaicos e o desejo carnal que nutre por sua irmã Ana. O incesto seria a quebra do fio que unia a família. Era inconcebível continuar as relaçoes cotidianas após tal baque, e isso faz com que o jovem garoto fuja, corra, tentando, de certa forma, manter as raízes pôdres que sustentavam a casa na iminência do desmonoramento, e a não negar o pecaminoso ato de apetecer sua irmã.
A fuga misteriosa de André, e até mesmo a volta, depois de seu irmão Pedro ir buscá-lo, é a escolha de muitos homens e mulheres que não conseguem se desvencilhar deste primeiro círculo social, que é a família, devido seu forte poder ideológico. Vontades são impostas, convenções estigmatizam e limitam; o que prevalece é a escolha do patriarca, ou da "moral", que muitas vezes é a mais pura imoralidade. O incesto entra metaforicamente como tudo aquilo que desafia esse estereótipo de família tradicional, onde o pai é na verdade um ditador, sufocando os filhos.
Pode-se fugir momentaneamente como André, ou até mesmo eternamente, mas viverá sempre preso em um mundo vazio, artificial; e pra que? Vivemos a partir de nossas escolhas, nossos atos, ou sendo controlados por tudo que nos é alheio? Isso é estar condenado a um amor platônico consigo mesmo. Sentir a paixão de sobreviver prevalecer sobre o tradicional, renegar a mesquinharia cultural ao qual se está fadado desde o nascimento: assim poderemos, ao menos, tentar estarmos plenamente vivos. Somos humanos, nao marionetes.

Balada do Cárcere de Reading


O casaco escarlate não usou,
Pois sangue e vinho são vermelhos;
E sangue e vinho havia em suas mãos
Quando prisioneiro foi feito,
Deitado junto à mulher morta a quem amava
E assassinara em seu leito.

Caminhava entre os Homens Condenados
Com roupa gasta e cor de cinza ;
Um gorro de críquete na cabeça,
E passo ligeiro e jovial
Mas nunca homem vi que contemplasse
Tão ansioso a luz do dia.

Eu nunca homem vi que contemplasse
Com tão embevecido olhar
Aquela puequenina tenda azul
Que os presos chamam firmamento,
E toda errante nuvem que passava
Com suas velas prateadas

Com outros condenados caminhava
Dentro de um círculo semelhante,
E grande ou pequeno imaginava
O crime que ele cometera,
Quando alguém sussurrou atrás de mim:
"Aquele vai ser enforcado".

Cristo! As próprias paredes da prisão eu vi
Girando a meu redor
E o céu sobre a cabeça transformou-se em elmo
De um aço abrasador;
E, embora eu fosse alma a sofrer,
Já nem sequer sentia a minha dor.

Sabia qual o pensamento perseguido
Que lhe estugava o andar,
E por que demonstrava, ao ver radiante o dia,
Tanta angústia no olhar;
O homem matara a coisa amada,e ora devia
Com a morte pagar.

Apesar disso - escutem bem - todos os homens
Matam a coisa amada;
Com galanteio alguns o fazem, enquanto outros
Com face amargurada;
Os covardes o fazem com um beijo,
Os bravos, com a espada!

Um assassina o seu amor na juventude,
Outro, quando ancião;
Com as mãos da Luxúria este estrangula, aquele
Empresta do Ouro a mão;
Os mais gentis usam a faca, porque frios
Os mortos logo estão.

Trecho do poema escrito por Oscar Wilde em 1898