sábado, 28 de agosto de 2010

A angústia e o nada


A angústia é o caráter típico e próprio da vida. A vida é angustiosa. E por que é angustiosa a vida? A angústia da vida tem duas facetas. De um lado, é necessidade de viver, é afã de viver, é anseio de ser, de continuar sendo, para que no futuro seja o presente. Mas de outro lado, esse anseio de ser leva dentro o temor de não ser, o temor de deixar de ser, o temor do nada. Por isso, a vida é, de um lado, anseio de ser e, de outro lado, temor do nada. Essa é a angústia. Pois o nada amedronta o homem.

Manuel García Morente
Fundamentos de filosofia, p. 331.

sábado, 21 de agosto de 2010

Ondas e devaneios


Lily continuou guardando os pincéis, erguendo e baixando os olhos. Ao levantar a cabeça, ela via o sr. Ramsay caminhando em sua direção, num andar incerto, descuidado, o ar ausente, distante. Um tanto hipócrita?, repetiu ela. Ah, não, o mais sincero dos homens, o mais honesto (lá estava ele), o melhor; mas, baixando os olhos, pensou: ele é egoísta, tirânico, injusto; e continuou com os olhos baixos propositadamente, pois somente assim poderia manter-se imperturbável entre os Ramsays. No momento em que ela os erguia e os via, sentia-se inundada pelo que chamava de "estado do amor". Passavam a fazer parte do universo irreal, mas penetrante, que é o mundo visto através dos olhos do amor. O céu se liga a eles; os pássaros cantavam através deles. E, o que era ainda mais emocionante, além disso ela sentia - ao ver o sr. Ramsay derrotado, retirando-se abatido, e a sra. Ramsay sentada com James à janela e a nuvem movendo-se e a árvore dobrando-se - que a VIDA, por ser composta de pequenos incidentes insignificantes que uma pessoa vive um a um, se tornava contínua e completa, como uma ONDA que a tivesse alçado e depois a lançasse de novo na areia da praia, ao quebrar-se.

Trecho de Ao Farol, de Virginia Woolf

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Negação


Não
Como um sim;
Um sinal
Não?
Como assim?
Um final?
Não!
Ainda assim
Menos mal

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A corrupção nossa de cada dia




Será que há solução para a corrupção? O Brasil se livrará desta mazela que o acompanha deste à época em que os portugueses puseram as mãos no território tupiniquim? A resposta é obvia – Não. Não enquanto votarmos nos mesmos políticos; é um verdadeiro absurdo vermos nos noticiários, escândalos envolvendo figuras conhecidas nos livros de historia e ainda assim eleger tais governantes. José Sarney que o diga; Desde a época da ditadura, ele é figura carimbada no meio político e perdura nela até hoje. Como presidente foi um fiasco total; Os planos Cruzado só ajudaram a disseminar a pobreza em grande parte das classes sociais; congelaram-se preços, salários e a inflação chegou a ponto alarmante, cerca de 86% no final de seu mandato. Ai já existem motivos de sobra pra não votar. Mas, ele atualmente só é o PRESIDENTE DO SENADO; o que me deixa mais perplexo é ver tantas notícias (e são recentes, saídas do forno) à respeito de irregularidades envolvendo seu nome – nepotismo, funcionários fantasmas, uso indevido de dinheiro público – e nenhuma providência foi tomada, nenhuma punição. Um absurdo! Vivemos mesmo em uma democracia? Talvez, na teoria. E volto com a mesma resposta - Não há solução. Não enquanto a imprensa brasileira for oportunista, partidária, pretensiosa e seletiva. Jornais e revistas de grande destaque nacional já foram protagonistas de vexames históricos; Globo e A Veja são duas especialistas no assunto. A primeira é descaradamente parcial; a segunda também. Pra que eu saiba, um dos primeiros pontos no jornalismo é a imparcialidade; é mostrar os fatos sem distorcê-los, sem dar uma opinião formada, pronta pra ser mastigada pela população acrítica. Mas os meios de comunicação posam de investigadores e denunciantes das arbitrariedades dos políticos, porém são seus maiores apoios. A Globo já elegeu a maior vergonha da era pós-ditadura: Fernando Collor. Sempre com um jogo de sensacionalismo, criticou o candidato da época Lula de todas as formas; forjou resultados como o Vox Populi, além de transmitir um debate editado onde o candidato Collor foi o vencedor. A Veja por sua vez, colocou capas e reportagens em que o Collor, que aliás é também figura da política atual, aparecia como o inimigo dos Marajás e blá blá blá...Collor venceu as eleições e tempos depois houve o impeachment do candidato. Bom, isso é só um das muitas razões para não se confiar em certos jornais de esgoto. Recentemente, o que veio à tona foi a entrevista em que a candidata Dilma foi simplesmente massacrada pelo entrevistador, nosso lindo e arrogante apresentador William Bonner. As perguntas, por incrível que pareça, tinham mais importância que as próprias respostas; mal a candidata abria a boca, o charmoso de mechas brancas já atacava de forma descarada a candidata. Era o Faustão, a Hebe, ou um jornalista aclamado por meio país que estava naquela bancada? O mesmo ocorreu com a Marina Silva; nada de propostas, só críticas e críticas... ai ai, ainda bem que temos a internet com seu leque variado de opiniões e jornalistas que primam pela equidade e sensatez; isso me dá um lampejo de esperança. Mas mesmo assim respondo novamente – Não. Não enquanto boa parte da população for massificada, acrítica, analfabeta (funcional ou não) e egoísta. Se os políticos fazem o que faz é porque alguém os colocou lá. E esse alguém somos nós. Antes de votar, temos que procurar analisar cada uma de nossas escolhas; elas é que vão decidir o nosso futuro. Tudo está ligado à política, portanto é de extrema importância votar consciente, pensando nos interesses coletivos da nação. Projetos como do FICHA LIMPA e as melhorias educacionais (mesmo que irrisórias), fazem meu otimismo como cidadão ser elevado e me leva a crer que talvez – Sim, nós podemos acabar, mesmo que aos poucos, com esta corrupção. Mas é preciso, primeiro, tirá-la de nosso cotidiano, de nossa cultura: temos que desbanalizá-la.

domingo, 8 de agosto de 2010

Deus e a merda



"Quando era garoto e folheava o Antigo Testamento para crianças, ilustrado com gravuras de Gustave Doré, via nele o bom Deus em cima de uma nuvem. Era um velho senhor, tinha olhos, um nariz, uma longa barba, e eu dizia a mim mesmo que, como tinha boca, devia comer. Se comia, devia ter intestinos. Mas essa idéia logo me assustava, por que, apesar de pertencer a uma família pouco católica, sentia o que havia de sacrílegio nessa idéia dos intestinos do Bom Deus.
Sem o menor preparo teológico, a criança que eu era naquela época compreendia espontaneamente uma incompatibilidade entre a Merda e deus, e, por dedução, percebia a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Das duas uma: ou o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus - e então Deus tem intestinos -, ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele.
Os antigos gnósticos pensavam tão claro como eu aos cinco anos. Para resolver esse maldito problema, Valenti, Grão-Mestre da Gnose do século II, afirmava que Jesus "comia, bebia, mas nao defecava".
A Merda é um problema teológico mais penoso que o mal. Deus dá liberdade ao homem e podemos admitir que ele não seja o responsável pelos CRIMES da HUMANIDADE. Mas a RESPONSABILIDADE pela MERDA cabe intereiramente àquele que criou o homem, somente a ele."

Retirado de A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera

terça-feira, 3 de agosto de 2010

O espelho



Quem é esse homem do qual não consigo tirar os olhos? O que me atrai nele? O seu rosto esguio, seus lábios secos sem movimento, ou o olhar distante? Fito-o e ao mesmo tempo não consigo encará-lo. Parece-me triste, talvez magoado, desolado. Um ser curiosamente paradoxal; despertava em mim asco e compaixão, ao mesmo tempo. Notei que tinha os cabelos despenteados; o corpo repulsivo era coberto de sujeira – há quanto tempo será que não toma banho? Ele se moveu, após tanto tempo estático; baixou a cabeça; deixei de vê-lo por um momento; o chão estava fétido, asqueroso tal qual o homem que eu observava. Voltei e ele ainda estava lá; seu semblante tinha algo de familiar. Será que o conhecia? Não, absolutamente; onde eu poderia ter conhecido tal aberração? Seu aspecto dava-lhe algo de animalesco, inumano. Aliás, aquilo que via não poderia ser chamada de humano; era imoral, vil demais. Entretanto, seduzia-me; seu jeito, sua aura misteriosa me hipnotizava. Uma força etérea suspensa no ar me forçava a ver através de seus olhos, mas eu não conseguia. Tinha medo do que poderia encontrar. Os olhos, talvez fossem o único ponto daquele corpo nu em que a verdade estaria presente sem deformações. Mas que Verdade era essa? A Verdade sobre sua alma; eu queria ver se aquela coisa possuía uma alma, porém tinha medo. O que eu enxergava era físico; sem uma alma, eu tornava-me superior a ele; eu podia ter uma, ele não. Resolvi encará-lo; sabia que sairia vitorioso; o humilhado aqui era ele, não eu. No momento que vi seu olhar, ele também me fitava, e de uma maneira cruel, inquisitória, como se procurasse algo em mim. Essa afronta irritou-me; a cólera tomou as rédeas da situação, quando vi já tinha golpeado o monstro. Senti-me aliviado; ele havia sumido; sim, havia ganhado a disputa – mas, que dor é essa, que me consome? – minha mão sangra, e minha dor é real. Ele me atingiu? Não, impossível; era como se algo tivesse refletido o meu próprio golpe. Baixei a cabeça, e vi. Vi que o homem ainda estava lá, agora fragmentado; não o via em sua plenitude, mas em partes. Peguei um pedaço de espelho do chão e vi novamente o seu olhar; nesse fragmento vi o todo. Sim, ele tinha uma alma; vi que era humano. Aquele homem era eu.