sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Fluídos


Indo de um corpo a outro, a existência trânsita, através de líquidos, humores. Ele e ela entram em contato, - os pensamentos cruzados, a pele fundida - e se tornam um só. O reconhecimento humano atinge seu clímax, seu apogeu. Antes, separados pelo detalhe do sexo, transformam-se na personalidade sem genitália aparente. Os amantes parecem dançar numa melodia natural - sob estrelas milenares - que já viram tantos outros, bailando. A troca profunda de olhares; os gemidos confundidos com o farfalhar das folhas...o suor respingando, para amenizar o calor dos corpos...a saliva, evidenciando o sabor da volúpia - e por fim, o fim. Separam-se como dois estranhos; os rostos, antes face a face, se repelem, evitando a nudez, agora, desvalorizada com a situação. Voltam a ser dois animais, dois simples e irreconhecíveis seres humanos. Nunca se viram; nem ao menos sabem o nome daquele com quem dividiram um pouco de seu ser; daquele que os completaram. Cada um segue seu curso, e novamente veêm-se solitários no ermo existencial, que deixa lacunas doloridas no âmago. Um ermo que precisa ser povoado, inundado por outros humores, sensações, sentimentos. Por fluídos que façam com que eles se sintam, novamente, vivos.

domingo, 19 de setembro de 2010

bem-me-quer?


A dúvida de não ser desejado;
O medo de ser desprezado;
Vasculhamos respostas, tornando elementos belos, em formas nuas e destituídas de cor;
À procura de uma flor, antes viva - e que jaz agora, morta - por causa de nosso temor;
Extirpamos toda sua beleza, suas pétalas, buscando aquilo que nos convém;
Então a brisa as leva, como leva nossas repetidas palavras também;
Desejando que estas cheguem até aquele que nos inspira admiração;
O começo - bem-me-quer e felicidade, o término - mal-me-quer e decepção;
Mesmo sabendo o resultado, insistimos novamente, ir buscar mais uma flor;
Mesmo sabendo, que aniquilando um lírio, não evitaremos a dor.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cartas


Ela tirou todos aqueles papéis e objetos velhos da gaveta. Cartas, contas, convites, de épocas distintas e passadas, se acumulavam dentro do armário centenário de sua bisavó. Na medida em que jogava no lixo aqueles objetos sem importância, a gaveta ficava mais vazia, nua, mostrando seu aspecto arcaico; a madeira corroída pelos cupins, e o amarelado tornavam-se mais evidentes; o cheiro de bolor inundava suas narinas, como se o passado, que estava ali guardado, tentasse penetrar, de forma intransigente, em seus pensamentos. Qualquer historiador acharia um disparate, desprezar assim, tantos documentos antigos – quantas histórias, segredos, romances não estariam ali presentes? – mas ela não se importava com as querelas que sua avó, bisavó, ou seja lá quem for, tenham tido. De forma inflexível, descartava tudo que julgava ser inútil – um bando de papéis velhos, - pensava ela. Nas últimas gavetas, quando quase todo o trabalho de limpeza estava concluído, ela observou que havia epístolas, não para sua avó, mas para ela, datadas de quando ela ainda era um bebê. A insensibilidade cedeu lugar à curiosidade. Ao invés de, simplesmente deixá-las de lado, passou, então, a lê-las. De carta em carta, foi-se revelando algo que ela nunca havia imaginado – a cada palavra lida, entrava em contato, cada vez mais íntimo, com seus pais. Na verdade, aquelas cartas, escritas por eles, lhe devolvia parte de uma época que a morte, e o orgulho de sua avó haviam roubado. Não chegou a conhecer os seus progenitores; não se lembrava de ter recebido um afago deles; de dizer o clichê, mas o importante “eu amo vocês”. O que tinha de seus pais eram apenas fotografias, que não transmitiam nenhum tipo de sentimento; a imobilidade das formas aprisionadas no retrato faziam-na odiá-los por não permanecerem vivos, fazendo dela uma solitária. O porquê de sua avó ter escondido tantos fatos importantes, tantas memórias, ela nunca virá a saber, e talvez não a desperte interesse, neste momento. A explosão de sensações, de revelações causadas pela cornucópia transbordante das letras, ocupava todo seu consciente, não havendo espaço pra outros questionamentos. As palavras imprimem, através do jogo lógico e semântico das frases, mensagens que a voz não seria capaz de transmitir. Aquelas cartas, descartadas para esvaziar gavetas, agora preenchiam seu coração, transformando suas rachaduras e seu bolor em algo vívido. Os objetos, antes inúteis, agora representavam a própria vida.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Que a noite termine...


"Apoiava brandamente as faces contra as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como rostos da nossa infância. Riscava um fósforo para ver o relógio. Quase meia-noite. É o momento em que o enfermo, que teve de viajar e ir dormir num hotel desconhecido, acordado por uma crise, se alegra ao distinguir debaixo da porta um raio de luz. Felicidade! Já é dia! Daqui a pouco os criados vão se levantar, poderá tocar a campainha, virão prestar-lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá coragem para suportar o sofrimento. Ainda agora pensou ouvir passos; os passos aproximam e logo se afastam. E o fio de luz que estava sobre a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o ultimo criado já se retirou e é preciso ficar a noite inteira sofrendo sem remédio."

Trecho de No Caminho de Swann, de Marcel Proust

domingo, 5 de setembro de 2010

Não fugirei


Uma manhã curiosamente insólita; longinquamente, ouvia-se uns poucos pássaros que entoavam uma melodia nem um pouco agradável; era algo lamurioso, como um pranto. O céu também chorava; a fina chuva emprestava ao solo ocre um cheiro nauseabundo. Não havia sol, nem claridade; a umidade penetrante invadia todo o cômodo, tornando-o pesado, sombrio e repugnante. Tudo permanecia imóvel, estático, suspenso no tempo. Por um momento, pensei que a vida tinha se dissipado. Não havia mais homens, animais; nem leis ou convenções morais; o mundo voltara a ser igual aquele de bilhões de anos atrás, sem pré-julgamentos e condenações. O devaneio falacioso foi interrompido pelo toque do telefone – uma invenção humana utilíssima para lembrar-nos freqüentemente de quanto o homem pode ser desprezível, só pelo seu tom de voz. Era uma notícia sobre alguém que ficara no passado – alguém que nunca mais eu ousara em pensar. Era sobre o meu pai; estava morto. A conversa foi curta; a pessoa prestou-me condolências, trocamos algumas palavras, e me informou sobre o dia, hora e local do enterro. Desliguei o telefone e deitei-me. A princípio, não senti nada, absolutamente nada sobre a morte daquele homem. Mas, repentinamente, - ao ver um fio de cabelo ondulando no ar, livre, sem destino aparente, sem parecer se importar com os obstáculos - revi todo o meu passado de clausura, de opressão e principalmente, a figura daquele que foi meu maior algoz. Tudo emergiu; aquilo que sempre fiz questão de esquecer voltava em lembranças amargas e com elas meus medos, frustrações, angústias e incertezas. Como pode, mesmo após a morte, ele me afetar assim? Pensei que o tempo e a distância tivessem me libertado do universo do qual fazia parte, mas o que fiz foi fugir; fugir ao invés de enfrentar. Era mais cômodo virar as costas, correr e esquecer... Mas um simples telefonema trouxe-me de volta a realidade que nunca aceitei – eu era um fracassado. Mesmo longe das críticas, das imposições paternas, não consegui realizar nada do que queria; não tenho amigos, nunca me casei, nem consegui escrever um grande livro. Tudo que eu desejava era provar pra mim e para ele, que poderia me tornar um grande homem vivendo ao meu modo, sob as minhas escolhas. Mas falhei; falhei por recear outras críticas, de ser subjugado novamente; por projetar nas outras pessoas a imagem daquele homem, e então, fugia delas. Mas agora que ele está morto, pouco importa se sou ou não um homem; pouco importa as críticas, o meu medo não me levou senão a uma prisão que se iniciou na infância e perdura até hoje. Irei ao enterro e o encararei após tantos anos; mesmo que a morte o tenha calado e ele não possa ouvir, eu falarei; posso ser um fracassado, mais desta vez, não fugirei.