domingo, 8 de agosto de 2010

Deus e a merda



"Quando era garoto e folheava o Antigo Testamento para crianças, ilustrado com gravuras de Gustave Doré, via nele o bom Deus em cima de uma nuvem. Era um velho senhor, tinha olhos, um nariz, uma longa barba, e eu dizia a mim mesmo que, como tinha boca, devia comer. Se comia, devia ter intestinos. Mas essa idéia logo me assustava, por que, apesar de pertencer a uma família pouco católica, sentia o que havia de sacrílegio nessa idéia dos intestinos do Bom Deus.
Sem o menor preparo teológico, a criança que eu era naquela época compreendia espontaneamente uma incompatibilidade entre a Merda e deus, e, por dedução, percebia a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Das duas uma: ou o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus - e então Deus tem intestinos -, ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele.
Os antigos gnósticos pensavam tão claro como eu aos cinco anos. Para resolver esse maldito problema, Valenti, Grão-Mestre da Gnose do século II, afirmava que Jesus "comia, bebia, mas nao defecava".
A Merda é um problema teológico mais penoso que o mal. Deus dá liberdade ao homem e podemos admitir que ele não seja o responsável pelos CRIMES da HUMANIDADE. Mas a RESPONSABILIDADE pela MERDA cabe intereiramente àquele que criou o homem, somente a ele."

Retirado de A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera

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