quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cartas


Ela tirou todos aqueles papéis e objetos velhos da gaveta. Cartas, contas, convites, de épocas distintas e passadas, se acumulavam dentro do armário centenário de sua bisavó. Na medida em que jogava no lixo aqueles objetos sem importância, a gaveta ficava mais vazia, nua, mostrando seu aspecto arcaico; a madeira corroída pelos cupins, e o amarelado tornavam-se mais evidentes; o cheiro de bolor inundava suas narinas, como se o passado, que estava ali guardado, tentasse penetrar, de forma intransigente, em seus pensamentos. Qualquer historiador acharia um disparate, desprezar assim, tantos documentos antigos – quantas histórias, segredos, romances não estariam ali presentes? – mas ela não se importava com as querelas que sua avó, bisavó, ou seja lá quem for, tenham tido. De forma inflexível, descartava tudo que julgava ser inútil – um bando de papéis velhos, - pensava ela. Nas últimas gavetas, quando quase todo o trabalho de limpeza estava concluído, ela observou que havia epístolas, não para sua avó, mas para ela, datadas de quando ela ainda era um bebê. A insensibilidade cedeu lugar à curiosidade. Ao invés de, simplesmente deixá-las de lado, passou, então, a lê-las. De carta em carta, foi-se revelando algo que ela nunca havia imaginado – a cada palavra lida, entrava em contato, cada vez mais íntimo, com seus pais. Na verdade, aquelas cartas, escritas por eles, lhe devolvia parte de uma época que a morte, e o orgulho de sua avó haviam roubado. Não chegou a conhecer os seus progenitores; não se lembrava de ter recebido um afago deles; de dizer o clichê, mas o importante “eu amo vocês”. O que tinha de seus pais eram apenas fotografias, que não transmitiam nenhum tipo de sentimento; a imobilidade das formas aprisionadas no retrato faziam-na odiá-los por não permanecerem vivos, fazendo dela uma solitária. O porquê de sua avó ter escondido tantos fatos importantes, tantas memórias, ela nunca virá a saber, e talvez não a desperte interesse, neste momento. A explosão de sensações, de revelações causadas pela cornucópia transbordante das letras, ocupava todo seu consciente, não havendo espaço pra outros questionamentos. As palavras imprimem, através do jogo lógico e semântico das frases, mensagens que a voz não seria capaz de transmitir. Aquelas cartas, descartadas para esvaziar gavetas, agora preenchiam seu coração, transformando suas rachaduras e seu bolor em algo vívido. Os objetos, antes inúteis, agora representavam a própria vida.

Um comentário:

  1. Adorei esse conto!!! Obrigada pelas visitas e abraços na alma!!!

    ResponderExcluir