domingo, 5 de setembro de 2010

Não fugirei


Uma manhã curiosamente insólita; longinquamente, ouvia-se uns poucos pássaros que entoavam uma melodia nem um pouco agradável; era algo lamurioso, como um pranto. O céu também chorava; a fina chuva emprestava ao solo ocre um cheiro nauseabundo. Não havia sol, nem claridade; a umidade penetrante invadia todo o cômodo, tornando-o pesado, sombrio e repugnante. Tudo permanecia imóvel, estático, suspenso no tempo. Por um momento, pensei que a vida tinha se dissipado. Não havia mais homens, animais; nem leis ou convenções morais; o mundo voltara a ser igual aquele de bilhões de anos atrás, sem pré-julgamentos e condenações. O devaneio falacioso foi interrompido pelo toque do telefone – uma invenção humana utilíssima para lembrar-nos freqüentemente de quanto o homem pode ser desprezível, só pelo seu tom de voz. Era uma notícia sobre alguém que ficara no passado – alguém que nunca mais eu ousara em pensar. Era sobre o meu pai; estava morto. A conversa foi curta; a pessoa prestou-me condolências, trocamos algumas palavras, e me informou sobre o dia, hora e local do enterro. Desliguei o telefone e deitei-me. A princípio, não senti nada, absolutamente nada sobre a morte daquele homem. Mas, repentinamente, - ao ver um fio de cabelo ondulando no ar, livre, sem destino aparente, sem parecer se importar com os obstáculos - revi todo o meu passado de clausura, de opressão e principalmente, a figura daquele que foi meu maior algoz. Tudo emergiu; aquilo que sempre fiz questão de esquecer voltava em lembranças amargas e com elas meus medos, frustrações, angústias e incertezas. Como pode, mesmo após a morte, ele me afetar assim? Pensei que o tempo e a distância tivessem me libertado do universo do qual fazia parte, mas o que fiz foi fugir; fugir ao invés de enfrentar. Era mais cômodo virar as costas, correr e esquecer... Mas um simples telefonema trouxe-me de volta a realidade que nunca aceitei – eu era um fracassado. Mesmo longe das críticas, das imposições paternas, não consegui realizar nada do que queria; não tenho amigos, nunca me casei, nem consegui escrever um grande livro. Tudo que eu desejava era provar pra mim e para ele, que poderia me tornar um grande homem vivendo ao meu modo, sob as minhas escolhas. Mas falhei; falhei por recear outras críticas, de ser subjugado novamente; por projetar nas outras pessoas a imagem daquele homem, e então, fugia delas. Mas agora que ele está morto, pouco importa se sou ou não um homem; pouco importa as críticas, o meu medo não me levou senão a uma prisão que se iniciou na infância e perdura até hoje. Irei ao enterro e o encararei após tantos anos; mesmo que a morte o tenha calado e ele não possa ouvir, eu falarei; posso ser um fracassado, mais desta vez, não fugirei.

5 comentários:

  1. Muitas vezes se torna necessário enfrentarmos coisas na vida, torna-se indispensável, pois fugirmos só trará mais sofrimentos, ficarão traumas, fantasmas vagueando nossas mentes, nossa vida, é melhor logo matar ou morrer e se libertar...
    ótimo texto profundo..
    beijos Marcius

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  2. Sim Beeta, as vezes o medo nos faz viver menos, talvez encarar os fatos e tentar agir, mesmo que as vezes nao sirva, é melhor do que ficarmos parados, passivos. Bjs beeta e volte sempre =D

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  3. O comentário que fiz no texto anterior era para este, rs, errei o link.

    Beijos.

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  4. Tudo bem lara
    beijos e volte sempre tambem =D

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  5. Lindo o seu blog! Abraços poéticos!

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